Não
sei quanto tempo estive desacordado, só sei que não esperaria acordar num lugar
assim. Deitado, tento ficar de pé, ao que meus músculos reclamam. Com algum
esforço, levanto metade de meu corpo, o suficiente para olhar ao redor. Encontro-me
numa casa vazia, parecida com a qual estive esses dias; diferencio-as pela
enorme quantidade de armadilhas e modificações que existem na minha. “Sem
contar que os móveis aqui são bem velhos. Será que alguém ainda mora aqui”.
No
instante em que penso nisso, ouço uma alguém murmurar ao fim do corredor.
Assustado, logo me ponho de pé, tentando encontrar um esconderijo em meio à
escuridão. Uma voz rouca ressoa pela sala:
-
Acalme-se, jovem. Não precisa se esconder. Sei que aí está.
O
som grave de suas cordas vocais invade meus ouvidos recém-acordados. Vejo uma
figura fantasmagórica se aproximar. “E bota fantasmagórica nisso!”. Não
acredito no que vejo: ele flutua!
-
Sim, sim, meu caro. Sou exatamente que pensa que sou.
-
Mas como? - pergunto incrédulo.
-
Todos morrem um dia - “Como pode dizer isso assim?”.
-
Você não parece morto para mim - replico.
-
Talvez não, na prática. Mas, na teoria, já morri.
Preciso
de uma pausa para entender o que acontece. Um morto - ou fantasma? - aparece
diante de mim e, sem nenhum impedimento, revela sua condição. “Acho que ainda
não acordei”.
-
Ok, senhor fantasma. Que faz aqui?
-
Vivo cá. Não posso sair. E você?
-
Estou perdido.
-
Entendo.
-
Mas, espera aí, disse que não pode sair daqui. Por quê?
-
Até poderia, mas não viveria muito.
-
Você já morreu, não tem o viver mesmo.
-
Você entendeu.
-
Não, não mesmo. Porque ficar num lugar assim?
-
Cá estou por essas bandas há mais de cem anos. Cá tenho tudo que preciso.
-
Tá falando daquele dildo rosa ali encima?
-
Não seja idiota. Aliás - começa, com uma expressão carrancuda - Caso cá tenhas
vindo para perturbar-me, peço-lhe que se retire.
-
Não. Cá vim, pois estou perdido. Já
te disse, certo?
-
Com vossa mentalidade. Explicado. - “Não achei viveria para ser criticado por
um fantasma!”.
-
Ok. Deixemos isso de lado. Disse que aqui tem tudo de que precisa. Mas, o que
exatamente?
Ele
aproxima-se, enquanto olha ao redor em um momento de contemplação.
-
A atmosfera - “What. Mas o que? Que
tipo de resposta é essa?”.
-
Como assim? Tipo a pressão do ar ou a quantidade de gases? - arrisco.
-
Não - ele diz enquanto dirige-se a uma estante - O ambiente. Veja - ele aponta
para ela- essas são de minha infância.
Vejo
o lugar que ele mostra. Alguns porta-retratos antigos jazem caídos sobre a mobília.
Vejo algumas fotos de família. Pego um dos quadros. A poeira densa cobre
totalmente a imagem. O limpo com a manga de minha camiseta e, assim, consigo
ver o conteúdo: duas crianças aparentando certa tensão agarram-se à barra do
vestido de uma jovem de sorriso vívido.
-
Essa é minha mãe, Janele - ele lança um olhar respeitoso sobre a foto - e meu
irmão, Leo - ele aponta para o jovem da direita.
-
Este outro é você?
-
Sim.
Coloco
o quadro na altura de meus olhos e observo a imagem.
-
Realmente - começo - é uma linda foto.
-
Concordo. É uma de minhas preferidas.
-
Hum. Parece haver várias boas fotografias aqui.
-
Sim. Mas, a maioria, não mais consigo ver.
-
E por quê?
-
Olhe - ele aponta novamente, mas desta vez para uma cômoda.
Vejo
diversos retratos deitados sobre o móvel.
-
Já entendi.
-
Lado ruim de ser um fantasma. Não posso arrumar os objetos.
-
Lado ruim de ser um fantasma - repito as palavras, um tanto quanto incrédulo,
então pergunto - E qual é o lado bom?
-
Contemplar existências como a sua.
-
Isso é ironia?
-
Ironizar, porque não?
-
Hey. Não projete suas frustrações para cima de mim. Afinal qual o sentido de
viver desta forma?
Vejo-o
respirar fundo. “E lá vamos nós!”
-
Vejamos - ele esvoaça em direção ao centro da sala - E quanto a sua existência:
há algum sentido?
-
Nós damos sentido a nós mesmos.
-
Boa resposta - ele aplaude, com uma expressão sagaz - E, se somos a mesma
espécie, o que te faz crer que não posso dar sentido à minha?
-
Haha. Sim, é válido. Mas há uma questão fundamental. O tempo! Não creio que
seja possível viver tanto tempo em condições como a sua: solitariamente, sem
poder tocar nada; recluso em si mesmo.
-
Ora - ele ri sarcasticamente - se não é possível, como explica o fato de eu cá
estar? - “É Johnatan, seu idiota”.
-
Haha. Tudo bem, você me pegou nesse ponto, mas no que você empreende seu vasto
tempo livre? Não há espaço para aplicação de nada; nada para fazer.
-
E porque eu deveria?
-
Ora, seres humanos sentem o impulso de deixar sua marca.
-
Eu não.
-
Chega - começo a irritar-me - Você não pode fazer nada e não quer fazer nada,
como pode dizer que há lado bom nisso?
-
Deixe-me lhe perguntar - ele lança-me um olhar rígido - Quanto você estiver no
meu lugar: o que fará?
-
Não seria como você diz. Faria algo.
-
O que, por exemplo? - sinto a frieza em seu olhar
-
Ora, nós humanos temos algo chamado razão, isso transcende a materialidade.
Gastaria meu tempo desfrutando dela.
-
Mas enquanto à aplicação dela? Você se contentaria em apenas pensar e nada
fazer? Como seria ter um mundo dentro de sua mente e um vácuo fora dela? Eu
posso lhe dizer - uma pausa - Você morreria.
-
O que? - digo, mais gaguejando do que falando - Morrer, depois de morto?
-
Quase isso. Você enlouqueceria. Não haveria ninguém para te salvar. Sua mente desvaneceria
até o ponto da inércia. Isso é a morte de fato, não carnal, mas espiritual. Sua
existência reduzida a migalhas.
-
Como? - esforço-me para soltar as palavras.
-
É simples - ele diz, mantendo sua expressão fria – Do que adianta ter razão se
não a usamos sabiamente? - um olhar penetrante – Que tal dar sua vida em nome
de um projeto que jamais terminará, ou almejar coisas que certamente lhe
renderão sofrimento? Durante cada instante, fragmentos de si vão desvanecendo,
a cada problema. Desesperança, desilusão e dúvida. Esses três ds malignos corroem o ser humano, e não são os únicos. - uma
pausa - E depois da morte, será que tudo isso passa? Não, claro que não. Tudo
só piora! Você verá toda a desgraça e nada poderá fazer. Agora você entende
porque vivo aqui, isoladamente, não entende? Ou acha que gosto de ser um
espectador passivo da realidade cruel que envolve o mundo. É nisso que
empreenderá seu vasto tempo livre?-
uma última pausa - A maior dádiva dos homens é também sua maldição.
Ele
sumariza tudo de forma tão certeira que fico sem palavras. Observo meu
interlocutor descrever uma volta no entorno da sala, enquanto tenta recupera o fôlego.
O silêncio absoluto faz-me refletir no que acabo de ouvir. Como contestar tudo
isso? Mesmo que houvesse palavras para dizer, elas não o alcançariam; a essa
altura, nem minhas próprias palavras me convenceriam do contrário. Sempre
considerei a racionalidade como o alicerce dos humanos, porém tudo que ela faz é
nos colocar num círculo de autodestruição. E o pior: ela se encarrega de nos
deixar conscientes disso. Sinto que fui longe demais, mas ainda há algo para
dizer. Mesmo contrariado, eu começo:
-
Então, para que serve a razão?
-
Simples - olho-o avidamente - A razão deve reconhecer sua limitação. Deve
reconhecer que há só algo capaz de nos manter sãos.
-
E o que é? - pergunto, atropelando as palavras.
-
A atmosfera - “What. Buguei!”.
Como
se estivesse lendo meus pensamentos, ele aponta novamente para os retratos. Ao
ver todas essas imagens, sinto vir à tona o sentimento de que o tempo é
implacável e de que não como fugir dele. Tudo envelhece e torna-se obsoleto. Ou
nem tudo. Há uma coisa que transcende a materialidade tão quanto a razão. “Acho
que entendi. O que seria de nós sem as pessoas com quem compartilhamos nossos
preciosos momentos que, ao final, tornar-se-ão lembranças? O que seria de nós
se nosso raciocínio não nos remete-se às coisas boas que nos envolvem, a
felicidade que retemos?. Acho que entendi”.
Levanto
um dos quadros que estavam virados para baixo. Não sei desde quanto tempo ele
estive desta forma e, caso eu não aparecesse por aqui, ficaria assim por muito
mais. Pela primeira vez desde minha chegada, o vejo sorrir; não um sorriso de
desdém, mas um sorriso genuíno, que vale por cem anos de solidão. Tão raro
quanto à oportunidade de conversar com um fantasma. Tão precioso quanto o
conhecimento que acabo de adquirir. Talvez eu tenha me precipitado: o que eu
vim fazer aqui? “Chatear uma alma solitária e mortificada pelo tempo? Acho que
devo um pedido de desculpas”.
-
Então - olho para ele - Aqui, diante de vós, jaz esse humano limitado - ele
lança-me um olha de desgosto; ou de arrependimento? - Mas talvez eu ainda seja
útil para algo - nossos olhares encontram-se - Quem sabe eu não possa te ajudar
com a limpeza - como resposta, um sorriso e um aceno de cabeça; isso é tudo que
preciso.
Jeferson de Almeida
Administração SP